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20 de Abril de 2024

É possível que o Poder Judiciário determine que o Estado construa novo presídio?

Publicado por Flávia Ortega Kluska
há 8 anos

possvel que o Poder Judicirio determine que o Estado construa novo presdio

Suponhamos a hipótese em que o Ministério Público constata diversas irregularidades na cadeia pública da cidade, tais como superlotação, celas sem condições mínimas de salubridade, desrespeito à integridade física e moral dos detentos etc, e, diante disso, o Promotor de Justiça propõe uma ação civil pública pedindo que o Estado:

a) inclua, no projeto de lei orçamentária, previsão orçamentária suficiente para a reforma da cadeia ou construção de uma nova unidade prisional;

b) seja condenado, ao final, a reformar a cadeia ou construir uma nova unidade prisional.

Em contestação, a Procuradoria Geral do Estado refutou o pedido, apresentando três argumentos principais, quais sejam:

1) o pedido do MP para que o Poder Judiciário determine ao Estado a realização de obras públicas viola o princípio da separação dos poderes, considerando ser essa uma decisão discricionária da administração;

2) o MP não pode fazer essa exigência porque não há disponibilidade orçamentária, ou seja, previsão no orçamento do ente estatal para a obra;

3) o pedido viola o princípio da reserva do possível.

Diante disso, a ACP deve ser julgada procedente? SIM. Segundo decidiu o STJ, constatando-se irregularidades em cadeia pública, tais como superlotação, celas sem condições mínimas de salubridade, desrespeito à integridade física e moral dos detentos, deve ser julgada procedente ação civil pública que objetive obrigar o Estado a adotar providências administrativas e respectiva previsão orçamentária para reformar a referida cadeia pública ou construir nova unidade, especialmente quando o réu não comprovar objetivamente a incapacidade econômico-financeira de fazer frente a essa despesa. STJ. 2ª Turma. REsp 1.389.952-MT, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 3/6/2014 (Info 543).

Fundamentos que amparam o deferimento do pedido do MP:

Violação a direitos fundamentais

A situação em análise revela clara violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, do mínimo existencial e à garantia constitucional de que o Poder Público deverá respeitar a integridade física e moral do preso (art. , XLIX, da CF/88).

Quando o não desenvolvimento de políticas públicas acarretar grave vulneração a direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, é cabível a intervenção do Poder Judiciário como forma de implementar os valores constitucionais.

Nesses casos, não é possível que o Poder Público invoque a discricionariedade administrativa.

Em suma, tanto o STF quanto o STJ reconhecem que, em casos excepcionais, é possível o controle judicial de políticas públicas.

Inexistência de ofensa à separação dos poderes

Não há ofensa ao princípio da separação dos poderes, pois a concretização dos direitos sociais não pode ficar condicionada à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa.

Seria distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente importantes.

Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, não existe empecilho jurídico para que o Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.

Inexistência de ofensa à previa previsão orçamentária

Não há que se falar em ofensa aos arts. , e 60 da Lei n.º 4.320/64 (que preveem a necessidade de previsão orçamentária para a realização das obras em apreço), na medida em que o MP pediu, na ação civil pública, que o Estado incluísse previsão orçamentária para as obras solicitadas. Logo, não se desrespeitou a regra que determina a previsão orçamentária das obras.

Não aplicação da teoria da reserva do possível

Não se pode invocar a teoria da reserva do possível, importada do Direito alemão, como escudo para o Estado se escusar do cumprimento de suas obrigações prioritárias.

Realmente as limitações orçamentárias são um entrave para a efetivação dos direitos sociais. No entanto, é preciso ter em mente que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado de forma indiscriminada.

Na verdade, o direito alemão construiu essa teoria no sentido de que o indivíduo só pode requerer do Estado uma prestação que se dê nos limites do razoável, ou seja, na qual o peticionante atenda aos requisitos objetivos para sua fruição.

De acordo com a jurisprudência da Corte Constitucional alemã, os direitos sociais prestacionais estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade. Ocorre que não se podem importar preceitos do direito comparado sem atentar para Estado brasileiro. Na Alemanha, os cidadãos já dispõem de um mínimo de prestações materiais capazes de assegurar existência digna. Por esse motivo, o indivíduo não pode exigir do Estado prestações supérfluas, pois isso escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica.

Todavia, a situação é completamente diversa nos países menos desenvolvidos, como é o caso do Brasil, onde ainda não foram asseguradas, para a maioria dos cidadãos, condições mínimas para uma vida digna. Nesse caso, qualquer pleito que vise a fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarado como sem razão (supérfluo), pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado brasileiro.

É por isso que o princípio da reserva do possível não pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial. Somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. Por esse motivo, não havendo comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político.

Importante salientar que em provas práticas do MP ou da Defensoria Pública, o candidato, ao preparar uma ação civil pública requerendo a implementação de alguma política pública, deverá pedir que a verba necessária para essa medida seja incluída no orçamento estatal a fim de evitar a alegação de violação aos arts. , e 60 da Lei n.º 4.320/64 (que preveem a necessidade de previsão orçamentária para a realização das obras em apreço).

Portanto, constatando-se inúmeras irregularidades em cadeia pública – superlotação, celas sem condições mínimas de salubridade para a permanência de presos, notadamente em razão de defeitos estruturais, de ausência de ventilação, de iluminação e de instalações sanitárias adequadas, desrespeito à integridade física e moral dos detentos, havendo, inclusive, relato de que as visitas íntimas seriam realizadas dentro das próprias celas e em grupos, e que existiriam detentas acomodadas improvisadamente –, a alegação de ausência de previsão orçamentária não impede que seja julgada procedente ação civil pública que, entre outras medidas, objetive obrigar o Estado a adotar providências administrativas e respectiva previsão orçamentária para reformar a referida cadeia pública ou construir nova unidade, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.

STJ. 2ª Turma. REsp 1.389.952-MT, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 3/6/2014 (Info 543).

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Você copiou do Dizer o Direito ou ele copiou de você? continuar lendo

Segue o link para comprovação:
http://www.dizerodireito.com.br/2014/09/ação-civil-pública-determinando-que-o.html continuar lendo

Excelente artigo Flávia ... infelizmente os políticos não cumprem com o mínimo do seu dever e ainda assim passam batidos.

A omissão é notória e não deve ser confundida como substituta de outros meios de socialização que pudessem diminuir os índices de criminalidade, afinal não se deve confundir o criminoso ocasional com o bandido profissional. continuar lendo

O Poder Executivo não investe em cadeias públicas por um único fator: este ato não produz votos.
E isso não vai mudar, é uma triste e suja realidade brasileira.
Venho sustentando que uma das soluções para o problema seria a privatização dos presídios, onde o particular teria a obrigação de construir e proporcionar condições dignas aos presos. Por outro lado, os presos deveriam trabalhar e produzir para dar lucro ao particular. continuar lendo