Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
20 de Abril de 2024

Afinal, é possível a punição pelo crime de desacato?

Publicado por Flávia Ortega Kluska
há 7 anos

Afinal possvel a punio pelo crime de desacato

De acordo com o art. 331 do Código Penal:

Art. 331. Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.

Desacatar nada mais é do que "menosprezar a função pública exercida por determinada pessoa, ou melhor, ofende-se o funcionário público com a finalidade de humilhar a dignidade e o prestígio da atividade administrativa."

O bem jurídico protegido é o respeito da função pública, sendo que a vítima primária deste delito é o Estado. O servidor ofendido é apenas o sujeito passivo secundário.

O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, que ficou conhecida como "Pacto de São José da Costa Rica". Neste tratado internacional, promulgado pelo Decreto nº 678/92, foi previsto como um dos direitos ali consagrados a liberdade de expressão. Confira:

Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

a. O respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou

b. A proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), há anos, vem decidindo que a criminalização do desacato contraria o artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica.

Em 1995, a Comissão afirmou que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário (CIDH, Relatório sobre a compatibilidade entre as leis de desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA/Ser. L/V/II.88, doc. 9 rev., 17 de fevereiro de 1995, 197-212).

Em 2000, a CIDH aprovou a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão onde reafirmou sua posição sobre a invalidade da tipificação do desacato:

"11. Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como 'leis de desacato', atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação."

Em suma, para a CIDH, as leis de desacato restringem indiretamente a liberdade de expressão, porque carregam consigo a ameaça do cárcere ou multas para aqueles que insultem ou ofendam um funcionário público. Por essa razão, este tipo penal (desacato) é inválido por contrariar o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

No Brasil, recentemente, houve um precedente que acolhe esta tese.

A 5ª Turma do STJ também decidiu que:

O crime de desacato não mais subsiste em nosso ordenamento jurídico por ser incompatível com o artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica.

A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado - personificado em seus agentes - sobre o indivíduo.

A existência deste crime em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito preconizado pela CF/88 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos.

STJ. 5ª Turma. REsp 1640084/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 15/12/2016.

OBS: O precedente acima foi tomado pela 5ª Turma do STJ, não havendo ainda decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. É provável, no entanto, que a Corte siga o mesmo entendimento.

Salienta-se que conforme entende o Supremo, os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil for signatário incorporam-se em nosso ordenamento jurídico com status de norma jurídica supralegal (RE 349.703/RS, DJe de 5/6/2009). Assim, a CADH é norma jurídica no Brasil, hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, só estando abaixo, portanto, das normas constitucionais.

É importante destacar que na época em que a CADH foi aprovada no Brasil, ainda não havia a previsão do § 3º do art. da CF/88.

O Pacto de San José da Costa Rica, por ser hierarquicamente superior ao Código Penal, não revogou o art. 331, mas sim o tornou inválido, conforme entendimento do STJ:

"No plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui de revogação, mas de invalidade" (STJ REsp 914.253/SP)

De acordo com os ensinamentos de Valério Mazzuoli, quando uma norma interna é incompatível com um tratado ou convenção internacional, dizemos que deve ser feito um controle de convencionalidade:

"Nesse sentido, entende-se que o controle de convencionalidade (ou o de supralegalidade) deve ser exercido pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados aos quais o país se encontra vinculado. Trata-se de adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para estes deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano do seu direito interno. Doravante, não somente os tribunais internacionais (ou supranacionais) devem realizar esse tipo de controle, mas também os tribunais internos. O fato de serem os tratados internacionais (notadamente os de direitos humanos) imediatamente aplicáveis no âmbito do direito doméstico, garante a legitimidade dos controles de convencionalidade e de supralegalidade das leis no Brasil"

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando do julgamento do caso Almonacid Arellano y otros v. Chile, passou a exigir que o Poder Judiciário de cada Estado Parte do Pacto de São José da Costa Rica exerça o controle de convencionalidade das normas jurídicas internas que aplica aos casos concretos.

Ressalta-se que o fato de o desacato não mais ser punido não significa que o indivíduo que ofendeu a honra de um servidor público não possa ser responsabilizado.

Dependendo da situação concreta e das palavras proferidas ou gestos praticados, o ofensor poderá responder por outros crimes, como: calúnia, difamação ou injúria. Neste caso, contudo, a vítima será a pessoa física, ou seja, o próprio servidor ofendido (e não mais o Estado).

O que a CIDH repudia é um tratamento penal mais gravoso para ofensas praticadas contra servidores públicos porque isso representaria uma restrição à liberdade de expressão e de controle social sobre as atividades da Administração Pública.

Bibliografia:

  • MASSON, Cleber. Direito Penal esquematizado. 9ª ed., São Paulo: Método;
  • MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. V. 4. São Paulo: RT.

Colega Advogado (a), confira o Manual Prático do Novo CPC, e agilize seu trabalho!

  • Sobre o autorAdvogada
  • Publicações677
  • Seguidores760
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações9808
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/afinal-e-possivel-a-punicao-pelo-crime-de-desacato/429637886

Informações relacionadas

Jhenifer Mendonça, Estudante
Modeloshá 4 anos

Habeas corpus com pedido liminar

Tribunal de Justiça de Minas Gerais
Jurisprudênciahá 4 anos

Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJ-MG - Apelação Criminal: APR XXXXX43280337001 MG

Blog do Jusbrasil
Artigoshá 2 anos

Crime de desacato: conheça melhor o art. 331 do código penal — Decreto-lei 2848/40

Fernanda Gonçalves, Advogado
Artigoshá 4 anos

O crime de desacato e o novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal

Maria Fernanda Correa, Advogado
Modeloshá 8 anos

Ação de substituição de curatela com pedido de antecipação de tutela (NCPC)

23 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)

Meu entendimento é de que desacato se refere tão somente à desobediência a uma ordem legítima de autoridade no exercício de suas funções.
Sendo assim, se alguém por exemplo ofender um policial com palavrões, referendo-se a pessoa física do policial, não há desacato algum. O policial, pessoa física, pode colher testemunhas e provas e requerer reparação moral desse ofensor, se quiser, mas não pode prendê-lo e condená-lo por ter dirigido a ele palavras ofensivas.
A *função de policial* não pode ser pessoalmente ofendida, porque não é pessoal. continuar lendo

John! suas palavras foram bastante elucidativa para o entendimento do texto em voga. Meus parabéns! continuar lendo

Nobres Colegas, não obstante aos esclarecimentos do texto, reitero meus posicionamentos pretéritos acerca do tema. A decisão proferida no Recurso Especial de nº 1.640.084 - SP pelo STJ, que foi batizado em outras publicações como descriminalização do crime de desacato, não possui efeito vinculante, não sendo de repercussão, não é íntegra de nenhuma Súmula do STJ, portanto, juízes, desembargadores e demais ministros do STJ, não estão obrigados a seguir o entendimento, pois possuem independência de função e liberdade de convicção, magistrados não estão obrigados a seguir esta orientação. Ademais, a conduta típica do desacato, não foi revogada pela decisão, sendo possível sua aplicação dependendo do caso concreto. O Superior Tribunal Militar em recente julgado demonstrou isto. Me corrijam se eu estiver errado. Por outro lado, não obstante a liberdade de expressão, já presencie algumas ofensas a servidores públicos eivadas de palavras de baixo calão, ofensas a instituição e aos seus agentes públicos das quais restaram caracterizado o crime de desacato, Portanto, cuidado pessoal. Lembrem-se, desta máxima do direito: Nenhum direito fundamental pode ser usado para a prática de ilícitos. Desacato é um ilícito. Liberdade de expressão é um direito fundamental. Por fim, expressões e atitudes ofensivas em face dos agentes estatais é uma conduta que inviabiliza arguir o direito à liberdade de expressão em matéria de defesa. Cada Tribunal tem um entendimento diverso deste apresentado no texto, não é matéria pacificada. Indico darem uma olhada na publicação postada neste site pela Doutora Elaine Nogueira com o titulo: Você sabe a diferença entre precedente, jurisprudência e súmula? É interessante. continuar lendo

Os autores dessa teoria consubstanciada no pacto de San José e aqueles que a defendem incondicionalmente, deveriam por-se no lugar do juiz, que em pleno início de audiência, levou sonora cusparada da ré, acompanhada de palavrões e ofensas pessoais. Só não chutou e bateu no juiz por que o advogado a segurou.

Antes que gritem que estou dando exemplo extremo, de um magistrado, peço que transportem a cena para qualquer servidor público: do PM ao coronel: do oficial de justiça ao promotor: do investigador ao delegado: do guarda de trânsito ao fiscal aduaneiro. Todos são servidores públicos. Representam o Estado. mas quem é ofendido, por isso, é a pessoa que representa a figura jurídica.

Agora vamos descer à Terra. Que faz o servidor aviltado? Literalmente nada? Continua a ser agredido, desacatado por estar cumprindo seu dever? Adverte que "se a srª não parar de me cuspir e chutar (ofender, etc.) vou colher testemunhas e representar judicialmente contra sua pessoa" ? Quando todos pararem de rir, contrata advogado (pois dificilmente obterá assistência judiciária gratuita) e abre ação penal privada? Que morrerá dali a algumas semanas no juizado especial criminal, pela transação, pela composição de danos e conciliação dos ARTs. 72 e 73 ou pela suspensão do processo do ART. 89, todos da Lei 9.099/1996. Com efeito, é uma agradável ficção (para o ofensor) tal responsabilização que o presente artigo alude e alguns comentaristas entendem cabível.

Temos que entender que a aplicação do ART. 331, (Desacato) ou mesmo dos ARTs. 330 (desobediência) e 329 (Resistência) têm por escopo preservar a ação estatal em defesa da sociedade, não propiciar abuso de autoridade de qualquer naipe. O bem jurídico tutelado é a autoridade pública, não a pessoa que representa a autoridade do Estado. O contrário é o caos.

A regra é o respeito mútuo, entre autoridade e administrado. A exceção é o abuso ou desrespeito. Nunca teremos autoridades cônscias e corretas, se não respeitarmos a fatia de poder que cada uma delas deve aplicar. Aí vamos para a lei da selva, quem tem mais força ganha. A prisão em flagrante por desacato, deve ser muito bem sopesada por quem tem o dever de aplicar a lei, concordo. Mas jamais deve ser sumariamente abolida, em homenagem a um diploma legal extremista, politiqueiro e oportunista, gerado no bojo de uma suposta redemocratização da América do Sul, após décadas de governos autoritários fardados. (depois vieram alguns sem farda, que até hoje existem.)

A palavra mágica, sem a qual a vida em sociedade não é possível neste planetinha, é: "princípio da autoridade"! Pelo menos até que atinjamos a plenitude da era de aquário... continuar lendo

Entendo que é possível a punição por crime de desacato ainda, conforme defendi a ideia num artigo que publiquei aqui mesmo há 2 meses. (https://daniloma.jusbrasil.com.br/artigos/416459688/realmente-houveadescriminalizacao-do-desacato)
O desacato não "censura" a liberdade de expressão, pelo contrário, somente limita-a, responsabilizando cada qual na medida de sua responsabilidade. Além do mais, o Estado deve ser respeitado, pois como seria uma sociedade sem que houve a coercibilidade Estatal, uma terra de bárbaros sem lei.
O desacato não impede a pessoa de se expressar, a pessoa somente deve ter ciência de que deve se expressar da maneira correta, com responsabilidade. continuar lendo

Também sigo do mesmo pensamento que o Sr. até porque desacato não se tornou uma Sumula Vinculante, que o juízo esta diretamente obrigado a seguir. continuar lendo

Danilo Mariano de Almeida, respeito sua opinião.
Somente queria ressaltar que não venho aqui explanar minhas opiniões, mas, sobretudo, dispor acerta dos atuais entendimentos dos Tribunais Superiores, principais novidades legislativas, temas divergentes.. continuar lendo

Claro Doutora, entendi o ponto de explanação no presente artigo. Ademais, esse tema foi amplamente debatido nesses últimos meses, inclusive tendo a sentença do TJSP questão de dias após a decisão do STJ, para vermos como é belo o dinamismo jurídico no país.
É um tema muito interessante e que desperta uma série de discussões, construtivas para o mundo jurídico, é claro.
Mesmo o STJ tendo esse entendimento, eu ainda mantenho a decisão a respeito baseado no mesmo informe do TJSP.
O desacato vai sempre depender de cada caso concreto, em alguns poderá ser aplicado, em outros não. Dependendo da conduta do agente. continuar lendo

Concordo, Dr. Danilo. Se ab-rogar o crime de desacato, o caos se instalará em "terrae brasilis". continuar lendo

Não precisa ofender o policial para ele querer te prender por desacato. Basta você discutir com ele, que ele já entende isso como desacato. Digo por experiencia própria. continuar lendo

Parabéns pela matéria. Abraço. continuar lendo