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25 de Abril de 2024

É possível o controle de constitucionalidade de Lei Estrangeira?

Publicado por Flávia Ortega Kluska
há 6 anos


O ordenamento brasileiro, ao aplicar a lei alienígena, o faz assim como quando aplica suas leis internas, ou seja, utiliza-se da presunção de conhecimento do direito pelo juiz (iura novit curia), à par de provas da existência da lei. Inarredável, portanto, a alegação de desconhecimento da lei para fins de decisão coerente com o sistema jurídico nativo do nacional suscitante. Este é um ponto de discussão que é levantado pela doutrina, conforme cita BARROSO (2004, p. 35): a interpretação e aplicação do direito estrangeiro. Destaca o jurista que prevalece a posição de que o juiz, ao aplicar a lei estrangeira, deverá fazê-la com o sentido que lhe é dado pelo sistema jurídico original, e não incorporá-la ao sistema jurídico interno, em equiparação às outras normas, dando-lhes o sentido do direito da jurisdição (foro).

Na esteira do pensamento do citado autor, ao aplicar a lei estrangeira com o sentido que lhe é dado pelo sistema jurídico estrangeiro, incoerente seria fazê-lo sem considerar todos os seus preceitos, sejam jurisprudências, doutrinas, preceitos, leis infraconstitucionais, e principalmente, considerando a lei fundamental, que é a Constituição.

De fato, havendo posicionamento sobre a validade e vigência no país de origem com relação à lei em questão, ou seja, se já houve exame da constitucionalidade da lei no próprio país legiferante, deverá este ser seguido. Até este ponto, o entendimento está em concordância com a maioria da doutrina, conforme se extrai dos ensinamentos do Professor Zeno Veloso (apud Paulo; Alexandrino, 2008, p. 207), in verbis:

“(...) o juiz do foro, se o assunto for remetido à lei estrangeira, deve seguir as decisões do direito estrangeiro sobre a mesma. Se já foi proferida sentença sobre a constitucionalidade da lei estrangeira, há de se concluir, inexoravelmente, que a mesma é válida e está em vigor no próprio ordenamento jurídico. Ao contrário, havendo declaração de inconstitucionalidade da lei, no Estado de origem, com efeito erga omnes, sua aplicação está vedada no ordenamento jurídico a que se integrava, e o juiz do foro fica vinculado a esta decisão, não podendo, igualmente, aplicar a referida lei em questão que apresenta conexão internacional.”

Estando assente a possibilidade de aplicação da lei estrangeira nos moldes do país de origem, isso implica em afirmar que o sistema de controle de constitucionalidade adotado pelo país em discussão também deverá ser respeitado. Ou seja, conforme já assinalado, existem países onde não é previsto o controle de constitucionalidade judicial. França e Inglaterra são exemplos, nos quais os motivos da inexistência já foram comentados. Logo, incongruente seria submeter uma lei francesa a um controle de constitucionalidade “in concreto” no Brasil, se o próprio ordenamento jurídico francês não prevê essa possibilidade.

Debate doutrinário mais veemente, no entanto, se dá quando do levantamento da possibilidade de controle de constitucionalidade de lei estrangeira, em face da constituição de origem, quando tal lei é plenamente vigente e eficaz naquele país. Vale dizer: quando não existe, naquele país, decisão alguma com eficácia erga omnes que justificasse sua retirada do ordenamento jurídico.

O Professor Luis Roberto Barroso, em interpretação às decisões do Supremo Tribunal Federal – STF, firmou entendimento de que há essa possibilidade. Como embasamento, ofereceu à análise dois acórdãos proferidos pelo STF.

No primeiro, trouxe-nos à baila o caso de extradição solicitada pela República da Argentina do ex-líder dos Montoneros, Mario Eduardo Firmenich[17].

Neste caso, é importante frisar que o tratado de extradição entre Brasil e Argentina não permite a extradição quando, pelo mesmo fato, o indivíduo tiver sido anistiado no Estado requerente ou requerido. Também, é necessário lembrar que o art. 5º, LII, da Carta de 1988 veda a extradição por crime político ou de opinião.

A defesa levantou duas questões, com base nas disposições descritas acima: 1) que a Lei de Anistia argentina era vigente e válida e abrangia o requerente, embora tivesse sido “revogada” pelo Congresso argentino, sob o argumento de ser inconstitucional; 2) que o art. 2º da mesma lei não poderia ser considerado válido, visto que excluía do benefício, arbitrariamente, pessoas na situação do extraditando.

Somados a estes fundamentos, o Pretório Excelso tinha, ainda, que enfrentar a questão da natureza dos delitos, imputados ao extraditando, se políticos ou comuns.

Em sua decisão, o STF, ao conceder a anistia, tomou como base os argumentos de que a Lei não abrangia o requerente, ou seja, considerou-a válida, bem como que havia primazia dos crimes comuns sobre os políticos, e finalmente que a alegação de que o extraditando seria julgado em seu país por tribunal de exceção era improcedente.

Como a manifestação dos Ministros do Supremo deteve-se a validade da “revogação” da lei pelo judiciário, sob o fundamento de inconstitucionalidade, não abrangendo a constitucionalidade ou não do art. 2º da mesma Lei, houve interposição, de embargos de declaração, pelo extraditando.

O Tribunal Pleno do STF deixou claro, na decisão dos embargos, seu posicionamento pela impossibilidade de declaração de inconstitucionalidade da lei argentina perante a Constituição daquele país, contudo “sem atentar para imensa contradição em que incorriam”, consoante adenda BARROSO (2004, p. 41).

O outro fato, acontecido em 1992, já na vigência da atual Constituição, é concernente a um pedido de extradição, por parte do Governo da Itália, de um brasileiro naturalizado, fundado no art. , LI, da Constituição Federal brasileira. Este inciso admite que haja extradição em caso de envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes.

Não obstante a inexistência de tratado de extradição entre Brasil e Itália, esta formulou seu pedido utilizando-se da promessa de reciprocidade.

Ocorre que a Constituição italiana não prevê reciprocidade nestes casos. Ao revés, propugna que só é possível extradição de nacionais se houver previsão expressa em convenção internacional. Com efeito, se fosse um nacional italiano a ser parte em processo de extradição, a promessa de reciprocidade não seria aceita.

O Relator em seu voto suscitou a questão da inconstitucionalidade da promessa de reciprocidade, conquanto tal assunto não tenha sido o objeto principal da questão. Com base nos casos ilustrados, o Professor Luís Roberto Barroso afirma que é possível à Corte, como já vem fazendo, avaliar a constitucionalidade de leis estrangeiras em face do ordenamento jurídico de seu país de origem, e negar aplicabilidade quando não entendê-la constitucional.

Contudo, arriscamo-nos a discordar do eminente Professor, utilizando-se das palavras do Ministro Cordeiro Guerra, proferidas quando da justificação do seu voto no caso aventado anteriormente, entre Brasil e Argentina:

“Não há que considerar a interpretação do Direito Constitucional Argentino porque não temos jurisdição na Argentina, nem somos um Tribunal supranacional, para dizer como os outros devem julgar: (...) O que poderíamos examinar, em matéria constitucional, é se a Lei de Anistia, tal como foi concebida e vige na Argentina, violaria a ordem jurídica ou constitucional brasileira”.

Se conclusão diferente fosse adotada, os pressupostos do controle de constitucionalidade, em seu aspecto político, cairia por terra, inclusive a definição da Constituição como espaço de luta político-jurídica. Correr-se-ia o risco de “engessamento”, embora momentâneo, da ordem jurídica de um país, por um outro, adverso a sua conjuntura político e social. O juiz, distante fisicamente e culturalmente da realidade daquele país, por maior cautela que detiver em sua decisão, não alcançaria a pré-compreensão necessária para determinar a inconstitucionalidade da lei.

Essa orientação é defendida pelo Professor Zeno Veloso (apud Paulo; Alexandrino, 2008, p. 208), conforme argumentos reproduzidos em razão de sua especial relevância:

“A presunção de constitucionalidade da lei estrangeira, dado que esta é a expressão da vontade popular, o testemunho de um querer coletivo, a manifestação do ideário e das aspirações de um determinado povo, integrado num específico ambiente, rodeado de circunstâncias especiais, numa peculiar realidade histórica, só de pode ser derrubada pela autoridade competente do ordenamento jurídico respectivo. (....)”

O autor finaliza seu posicionamento, lembrando que o que o juiz pode e deve fazer é verificar o estado de validade constitucional atual da lei estrangeira, considerando o próprio ordenamento jurídico do país de origem da lei, conforme já frisado acima.

O caráter político das decisões judiciais é há muito discutido, e embora, em nível de aplicação, reconheça-se que há separação entre direito e política, isto não denota que não haja nenhum efeito político em tais decisões.

A aceitação de uma total despolitização do direito, segundo dispõe GRIMM (2006, p. 15), teria como arcabouço o raciocínio de que não existem lacunas e contradições na legislação, o que não é verdadeiro. Não é possível se prever todos os casos em concreto, de sorte que há uma margem de interpretação dada ao juiz para que o faça, evidentemente, de conformidade com o sistema jurídico vigente. Além disto, inequívocas as mudanças sociais que suscitam uma pré-compreensão da conjuntura social e política, enraizando nas decisões preferências políticas e ideológicas dos juízes.

As normas constitucionais, pelo seu caráter mais rígido que as ordinárias, são mais lacunosas ainda, dando azo a uma maior margem interpretativa, conforme continua GRIMM (ibid, p. 16), de certo que não pode prosperar a noção de controle constitucionalmente eminentemente técnico.

Enfrentada a questão do controle de constitucionalidade de lei estrangeira em face da Constituição de origem, menos árdua torna-se a discussão sobre a possibilidade de verificação da compatibilidade da lei alienígena aqui aplicada, com a Lei Maior brasileira.

A fim de dirimir a dúvida, necessário se faz lembrar o que o art. 17 da Lei de Introdução ao Código Civil preceitua:

“Art. 17. As leis, atos, e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.”

O conceito do que se considera ordem pública é objeto de grande discussão, e seu detalhamento não traria resultados práticos para o presente estudo. Mas, com intuito de dar maior clareza ao instituto, utilizamos a conceituação de BARROSO (2004, p. 46), para o qual ordem pública é “um princípio geral de preservação de valores jurídicos, morais e econômicos de determinada sociedade política”. Em continuidade, ensina que em obediência a ordem pública, aproveita-se ao máximo a parte que possa ser assentida na aplicação direta ou indireta da lei estrangeira. Não havendo aproveitamento, aplica-se a lex fori.

No Brasil, o conceito de ordem pública é ainda mais definido. Em que pese contradições doutrinárias no que diz respeito a aceitação da ordem pública como conceito extra-constitucional, ou seja, fora do conteúdo da Carta Suprema, o Código de Bustamante, de obediência obrigatória nacionalmente, dispõe em seu art. 4ª que “os preceitos fundamentais são de ordem pública internacional”.

Desta feita, consoante a LICC, o juiz não poderá, ao aceitar a norma estrangeira, ignorar se esta está de acordo com a ordem pública, e esta, por sua vez, abrange todos os preceitos constitucionais, seja em seu aspecto positivo, de prever a lei alienígena algo que a Constituição não permite, ou em seu aspecto negativo, em vedar algo que o ordenamento constitucional admite.

Corroborando a idéia, a própria Constituição de 1988 prevê em seu art. , inciso XXXI uma hipótese expressa de afastamento de direito estrangeiro: é a que se apresenta nos casos em que não seja mais favorável a lei pessoal do de cujus. Nesta hipótese aplicar-se-á a lei brasileira para a sucessão de bens de estrangeiros situados no País, em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros.

Fonte: http://www.ambito-jurídico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9082

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Excelente artigo! continuar lendo

Importante! continuar lendo

Artigo muito interessante. Particularmente, sou da firme opinião de que a interpretação das leis devem se ater às suas lacunas. A lei não possui palavras inúteis, não é assim que aprendemos? Então, não entendo porque um caso concreto que está claramente regulado nas leis que normatizam o tema tem que virar fonte de tanta discussão. A nossa lei de extradição prevê muito claramente os casos de extradição, os nossos tratados internacionais, idem, e as constituições estrangeiras também são bastante claras. Raramente irá aparecer um caso que não se aplica a nenhuma previsão legal e que mereça o esforço de interpretação extravagante, por analogia ou outro método de interpretação. Em que pese a interpretação das leis em casos de lacunas, o Estado brasileiro tem por obrigação, respeitar a soberania nacional nas decisões. E daí, o que vai valer é a nossa lei e não a dos outros, já que a lei alienígena deixou uma lacuna em determinado caso concreto. Jamais o Estado brasileiro poderia passar por cima da nossa soberania em uma decisão judicial, por mera questão política. Enquanto a cooperação entre os povos é um princípio, a soberania nacional é um fundamento. Assim, não se deve aplicar um princípio em detrimento de um fundamento. continuar lendo

Excelente texto, Dra. Parabéns. continuar lendo